Venha compartilhar um pouco do trabalho que realizo como historiador e professor da cidade de Cotia. Mergulhe no passado das pessoas que construiram este lugar, recorde fatos marcantes que deram identidade cultural a esta cidade.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

TIMIDEZ


Tenho a impressão que o sujeito tímido é aquele que deseja se esconder do mundo. Não quer pertencer a este mundo maluco e esconde na timidez as suas aflições. O tímido guarda pra si seus sonhos e desejos. Existe um medo constante do tímido de ser roubado. Ele vive preso dentro de si para não ser julgado. O tímido vê o mundo de forma diferente. Ele fala com os olhos. Ele fala com as mãos. Ele é atribuído de muitas linguagens. Para quem não é tímido é difícil perceber seus gestos. O tímido fala com sorriso quase opaco. A timidez é um disfarce.

Não é fácil ser tímido em um mundo exibicionista. Cresça e apareça a qualquer custo – este é o lema. Não é fácil ser tímido em um mundo que para ser celebridade basta ser idiota. Não é fácil ser tímido em um mundo em que a exposição do corpo é explorada exaustivamente. Beleza. Cada um tem a sua beleza. O tímido é um sujeito esquisito. Bobo. Fora de contexto. Engana-se quem pensa assim.  A timidez é uma auto defesa contra a mediocridade. O tímido é um observador nato. Se sente no mundo diferente de quem se considera normal. “Normal”! Como diz o poeta: de perto ninguém é normal.  

Engana-se quem pensa que o tímido é aquela figura retraída. Engana-se quem acha que o tímido é aquele sujeito recatado. O tímido pode ser extrovertido justamente para esconder a sua timidez. O tímido esconde seu olhar. Não porque é covarde e não encara, é que sua timidez lhe permite ler a alma do observado. Não é fácil ser tímido. A sua personalidade é forte. Ele tem medo de falar o que está vendo nas entrelinhas das pessoas e machucá-las. Não é fácil ser tímido em mundo de mentiras. Em um mundo de faz de conta. A timidez é uma defesa constante. O tímido é um ser de mil facetas. Sabe aonde quer chegar. Não se iluda com a ideia que a timidez o impeça de chegar a algum lugar.


Timidez é um estilo de vida...  

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

JOSÉ ROBERTO SANTOS PEREIRA: ENCANTADOR


A maior riqueza do homem
é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou - eu não aceito. 
Manoel de Barros
Deus, porque tem levado tanta gente querida?

Prof. Zé Roberto, era assim que os alunos de História de Moema o chamavam. Não importava o horário da sua aula na grade de disciplinas da Faculdade, estávamos na sala de aula esperando a novidade da noite.  Sempre uma boa aula. O Prof. Zé, com seu entusiasmo e conhecimento, era o nosso presente. Reflexão. Uma aula dele era uma lição de vida. As aulas eram tão fortes e marcantes que ficávamos depois do horário para discutir temas interessantes propostos pelo mestre.

A aula na grade podia ser a última da sexta feira, mesmo assim a sala estava cheia de alunos entusiasmados para saber que pedaço do conhecimento iria desmistificar aqueles momentos difíceis que vivíamos. O Zé tinha este dom de encantar.  Movimentos sociais eclodiam. Os militares resistiam. Greves. Diretas Já! Movimentos culturais surgiam de todo lado. Alunos inquietos e loucos para participar. Alunos que queriam adquirir conhecimento para entender o que estava acontecendo. Foi neste contexto de efervescência que entrou o Prof. Zé Roberto generosamente em nossas vidas. 


                                      Prof. Zé Roberto

O Prof. Zé não se comunicava com seus alunos de cima de um pedestal. O Prof. Zé não era igual aos seus alunos. O Prof. Zé se comportava como um educador. O que intermediava e enriquecia esta relação com seus alunos era o conhecimento.  O seu conhecimento pessoal também! Tinha uma capacidade quase única e pontual no uso da fala.  Nunca exagerava ou falava de menos. Pontual. Profundo. O Prof. Zé tinha uma capacidade imensa de ouvir. Quando opinava, acolhia. O interpelador falava incansavelmente e o mestre ouvia com toda paciência do mundo sem falar uma palavra. Ouvia calmamente. Depois da conversa o aluno se levantava satisfeito com o silêncio e muitas vezes com as respostas que encontrava em si.  Foi com o mestre Zé que aprendi que o silêncio também fala.

Aproveitávamos da sua generosidade. Quando precisávamos de um aconselhamento, aconselhava com carinho e amor. Não brincava com os nossos sentimentos. Não mentia. Não iludia. Apontava caminhos. Não apontava o caminho certo ou torto. Dava ferramentas para o aluno construir seu caminho. Um educador com uma postura impecável.  Conversar com o Prof. Zé era aprender como se deve respeitar o conhecimento. Respeitar a vida.  Tinha uma enorme facilidade de mostrar como éramos importantes. Assim era o mestre Zé.

Reencontramo-nos anos depois para organizarmos o Projeto de Educação para Secretaria de Educação de Cotia. Juntamos nesta época um fabuloso grupo de educadores. O mestre apontava caminhos sólidos com seu conhecimento. Um homem enriquecedor.  Assumimos a Secretaria da Educação depois de uma eleição para Secretário e o Prof. Zé assumiu a Coordenação do Departamento Pedagógico. Brilhou. Novamente contamos com sua generosidade. Os seus cursos de História da Arte eram incríveis. Os seus cursos eram concorridos.  Não brilhou sozinho, fez com que brilhássemos. Coletivo. Resta lamentar esta partida tão cedo, meu Deus!

Não era um homem completo - ainda bem - brilhava na sua incompletude. Sabia como ninguém socializar seu conhecimento. Era um encantador de gente. 

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

CARNAVAL, OLIMPÍADAS E ELEIÇÕES...


Que tal nos comportamos de forma diferente nestas eleições?  Deixar de lado todas as pedras (no sentido figurativo) que gostaríamos de atirar nos políticos e analisá-los a partir daquilo que desejamos para nosso cotidiano? Este desejo não pode ser individual e sim coletivo. Combinado. Analisaremos como nos comportamos ou deveríamos nos comportar diante da enxurrada de informações que receberemos daqui para frente, de todos os candidatos.

Ora, todos os candidatos, sem exceção, se apresentam como um produto exposto em uma prateleira de supermercado. Impecáveis. Gastam milhões para aparecer aos nossos olhos como defensores dos nossos interesses, sempre simpáticos! Já que se oferecem como produtos, então vamos comprá-los como tal e com muita cautela.

A primeira observação é olhar a validade do produto. Prevenção. Não compramos produtos perecíveis para colocar na mesa de casa, não é mesmo? Mas atenção! Não estou falando da idade do produto... Depois devemos olhar o enunciado que apresenta este produto.  A etapa seguinte é pesquisar sua origem.   

Muito cuidado, quem vê cara não vê coração. Questionamentos. O candidato que se apresenta já teve algum cargo no poder legislativo ou executivo? Como foi seu desempenho? É bom conhecer a história deste produto todo pomposo e agora tão solícito.
Apenas uma advertência: estas indagações não impedirão você de votar errado de novo. Todos (quase todos) os candidatos criam uma imagem de vida associada a sofrimento. Desta forma nos sensibilizam. Somos um povo emotivo. Muito cuidado! Cuidado principalmente com as histórias de vida tipo melodrama mexicano.

Mesmo com todo cuidado a embalagem dos produtos pode ser enganosa. Pode dizer uma coisa e ser outra.

Há um tempo diria que a história de um candidato era importante e bastava no sentido da nossa escolha. Agora não é bem assim, eles estão muito parecidos. Fica difícil decidir. Fica difícil escolher.
Mas aqui com meus botões, não é tão difícil escolher um candidato. É só refletir nestas questões: Como anda a saúde da sua cidade? Como anda a educação da sua cidade? Como anda a segurança da sua cidade? Como anda a mobilidade urbana na sua cidade? Penso que estas perguntas podem ajudar a escolher ou formar o perfil de um candidato. Além disso, uma forma coletiva de pensar a política com ética que tanto desejamos.

Franqueza é uma coisa importante na vida. Ou nos comportamos como cidadãos que realmente queremos uma educação melhor, um atendimento humano na saúde, segurança e um transporte melhor, ou estamos perdidos. Se tivermos a mesma preocupação com política como aquela que temos com o futebol, as coisas serão diferentes. Adoro futebol.

Não vale votar em troca de um cargo que vai lhe compensar individualmente. Sabe, não vale o jeitinho... se conseguirmos pensar na escolha de um candidato a partir das nossas necessidades sociais, com certeza eliminaremos muitos candidatos sem noção do que é servir a sociedade.


Mesmo assim podemos cometer erros. Errar faz parte da nossa caminhada... O que não podemos é deixar os outros decidirem pela gente ou fazer de conta que política é algo distante e que não faz parte da nossa vida. Os produtos engomadinhos adoram este tipo de comportamento.  Até agora analisamos a aparência, a embalagem, falta olhar o conteúdo deste nosso produto.  Aí precisamos aguçar os nossos olfatos.  Porém, este critério também é muito importante para escolher um candidato e será preciso escrever um outro artigo.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

UM CONTO DE CARNAVAL


Naquela pacata cidade do interior ninguém imaginava que Dorotéia faria o que fez. Ninguém mesmo! Nem o Padre Adalberto. Dorotéia, moça recatada. Tímida. Quando saía de casa para ir à missa atravessava a praça com a cabeça escondida entre os ombros. Na cidade ninguém conhecia seu olhar. Nunca dera ousadia a ninguém. Mas em que lugar deste mundo não há um alcoviteiro? Em todo canto. As más-línguas falavam. Diziam que ela cobria o corpo todo com aquela roupa preto grafite até a cabeça por sofrer de um amor não correspondido. Um abandono amoroso bem no início da adolescência.  Gervásio, o chalaça do lugar, dizia de boca cheia que tinha visto a moça há muito tempo se banhar na Lagoa da Serra. Dizia ele, corpo escultural. Ninguém no lugarejo acreditava em Gervásio por contar muita mentira. Mentiroso de mão cheia.  

Além das missas, que Dorotéia não perdia todos os dias no mesmo horário, ela também visitava o confessionário de Padre Adalberto. Do seu trajeto, que consistia vir do final da rua principal da cidade até o Largo da Matriz, Dorotéia caminhava impecável. Lentos passos... o braço junto do corpo se movia a cada passo com leveza. Os homens suspiravam, os olhos das mulheres eram invejosos. Elas também invejavam aquela solidão retida. Que segredo guardava Dorotéia, perguntavam-se as mulheres da vila. Às três da tarde em ponto ia rumo ao confessionário, sentava-se espartanamente e conversava com o padre com voz baixa e suave. Uma única vez um deslize, e aqueles que estavam na fila do confessionário viram algo da moça em apenas um lapso de segundo: um descuido e o seu véu preto caiu. Antes que chegasse ao chão pegou-o no ar e cobriu o rosto novamente.  Todos viram uma lágrima correr pelo seu rosto. Porque aquela lágrima? O que ela revelava?

Da casa da família de Dorotéia ninguém ouviu um barulho naquele Carnaval. Eles ouviam marchinhas antigas, soube-se depois, mas ouviam com extrema discrição. O volume da vitrola era tão baixo... Há alguns anos a família morava ali e ninguém se aprazerava da amizade dos moradores daquela casa. Janelas fechadas que se abriam em raras exceções. Apenas quando a procissão passava e mesmo assim nem sempre a janela se abria. A família de Dorotéia viera morar na cidade vinda da cidade grande. Da metrópole. Na igreja sentavam-se religiosamente nos bancos da frente o pai, a mãe e dois irmãos.  O silêncio e a educação daquela família provocavam urticárias na língua dos beatos e beatas. Que segredo guardava aquela família? Os maledicentes inventavam histórias fantasiosas. Será que eles teriam vindo fugidos da polícia?  A completa discrição da família de Dorotéia incomodava os invejosos.

Naquele dia em que o véu caiu e Dorotéia ficou desprotegida, a conversa dos fofoqueiros da fila da confissão beirava a loucura: alguns diziam que a moça era bela, cabelo comprido e preto, os olhos castanhos e os lábios grossos. Somente Valdirene dizia que Dorotéia era nariguda e feia. Pura inveja. Feia era Valdirene. Solteirona rancorosa. Mexeriqueira. Uma coisa pode-se dizer tranquilamente – Dorotéia era linda.

Com a chegada do Carnaval a rua principal se enchia de foliões. A cidade, que não tinha mais do que dois mil habitantes, neste período de festa pagã chegava a vinte mil. Muita alegria. O que os moradores não sabiam era que aquele carnaval seria diferente dos outros. Bem diferente, mas não trágico...

Na terça-feira de Carnaval, a casa silenciosa reverberava marchinhas estridentes. As janelas estavam escancaradas e o “Pierrô Apaixonado” era ouvido na outra extremidade da rua. Barulho incomum naquela casa, mas tanto o barulho como as brincadeiras de lança perfume e a algazarra não foram percebidos pelos foliões. Ninguém se atreveu a dar uma olhadinha pela janela aberta, nem mesmo se importou com a novidade estranha, pois blocos e mais blocos passavam pela rua chamando quem quer que estivesse por ali para a folia.

A música alta na casa só foi percebida na manhã de Quarta Feira de Cinzas. Quando os moradores começavam a despertar e caminhavam para a missa, os curiosos começaram a se aglomerar na frente da casa. Ninguém se aproximava da janela escancarada, enquanto as marchinhas continuavam ecoando pela rua sem nenhum pudor. “Olha a cabeleira do Zezé, será que ele é...” “Quanto riso, oh, quanta alegria, mais de mil palhaços no salão...” “Ei, você aí, me dá um dinheiro aí...” A urtiga das beatas aumentava assustadoramente a cada nova marchinha. Não demorou em surgir a pergunta no meio da multidão: “- Quem tem coragem de entrar na casa para ver o que está acontecendo?” Antes que alguém fosse indicado pelos curiosos, Gervásio saltou como um gato e soltou um grito. Eu!
Começou a “entração” de Gervásio na casa, cômodo por cômodo. Depois de alguns minutos o alcoviteiro apareceu na porta da frente com os olhos esbugalhados.  A multidão se espantou. Alguém exclamou: “- O que aconteceu?” Gervásio sem cor e sem voz disse ter sumido todo mundo da casa. Não tem uma alma viva na casa. Até os móveis sumiram, menos a vitrola que tocava marchinhas. Espanto geral. Será que foram sequestrados? Será que foram abduzidos? Perplexidade! Toca o sino da igreja e os fieis caminham para a Missa de Cinzas cabisbaixos e com conversas entre lábios. Ninguém naquele momento teve coragem de dizer um nada sobre o sumiço da família de Dorotéia.

Quando Gervásio se atreveu a falar alguma coisa, um psiu autoritário soou do meio do povo e sua fala foi cortada pelo meio: “- Será que foi o...” Psiu! E todos ali caminharam para a missa. A igreja enfeitada. Os coroinhas em prontidão. O coral e a pequena orquestra esperavam a chegada do padre. O padre que era rígido com os horários e não aparecia. Nos anos de paróquia Padre Adalberto nunca tinha se atrasado. Nem quando estava doente se atrasava.  Os fieis estavam inquietos, queriam se limpar dos pecados da festa pagã.  Dona Antonieta, fervorosa em sua fé – fé que era proporcional à sua língua maledicente – soltou um “Será que é o que estou pensando?”. Ela não gostava do padre por motivos não sabidos no povoado...

Antes que Dona Antonieta continuasse com seus pensamentos maldosos os primeiros acordes da orquestra acabaram com as conjurações contra o padre. Quando ele entrou acompanhado dos coroinhas e os cânticos religiosos, o público na nave da igreja se espantou. Cadê o Padre Adalberto? O que ali entrara era seu substituto! Murmúrios tomaram conta da igreja.  Uma voz mansa perto da sacristia dizia, “será que Gervásio e Dona Antonieta tinham razão em suas elucubrações?” Uma voz mais suave do que a outra dizia “não passa de divagações destes fofoqueiros.” Outra voz com um tom sarcástico indagava, “será?”.

Em questão de minutos os boatos com a ausência do padre na Missa de Cinzas e o sumiço da família de Dorotéia se espalharam pela cidade. Como a mente humana é perversa, principalmente quando pode existir a possibilidade de um amor verdadeiro! Evaldo, o cocheiro, dizia abertamente para quem quisesse ouvir: Padre Adalberto e Dorotéia tinham fugido no sábado de Carnaval. A fala do cocheiro continha inveja e ódio. Evaldo era louco por Dorotéia. Um amor platônico, nunca correspondido.

Ambos tinham realmente fugido juntos. Padre Adalberto era aquele amor adolescente de Dorotéia que simplesmente sumira. Ele não tinha ido embora como imaginara Dorotéia. Tempos depois ela ficara sabendo que os pais do rapaz trabalhavam na construção da ferrovia que crescia para o interior. Anos de busca do seu amor e Dorotéia descobriu que Adalberto tinha se ordenado padre em uma pequena cidade. Um detetive pago pela família havia descoberto seu paradeiro. Isso explica a chegada repentina desta família ali no povoado. Mas até hoje, a única coisa que os moradores da cidade sabem é que de fato eles tinham fugido. Ninguém nunca soube dos detalhes deste belo reencontro.  

O reencontro de um amor do passado só presta saber aos envolvidos. Ninguém na cidade sabe como eles viveram depois do desaparecimento. Tiveram filhos? Foram felizes? Há sentimentos na vida que só interessam aos que os sentem. O sumiço da família foi planejado antes que descobrissem o amor entre Adalberto e Dorotéia. Não queriam passar nenhum tipo de constrangimento. Outras histórias apareceram na pacata cidade. Mentiras. Invejosos. Para alguns é tão difícil entender o que é o amor. Nem toda história de amor tem um final feliz. Esta até onde sabemos teve um. As línguas maledicentes jamais apagariam a beleza deste amor entre Adalberto e Dorotéia.


Uma única dúvida restou: por que a família deixara para trás a vitrola tocando marchinhas? Por quê?